
André Baniwa1, Ana Luiza Melgaço2
Belém, 08/11/2025
Desde que o homem Yalanaw3 pensou em dominar o mundo, pensou também em inferiorizar outros povos nativos como parte de seu projeto de dominação. Nessa perspectiva, os sistemas de conhecimento dos povos indígenas foram sistematicamente inferiorizados e invisibilizados.
No Brasil, o chamado 'descobrimento' significou violência contra os sistemas de conhecimentos indígenas e suas tecnologias, por meio de demonização de conhecimentos, imposição de modelos externos e ruptura das tecnologias tradicionais de cuidado. Promovendo uma hierarquia de conhecimento, como estratégia de colonização, de colonialidade e neocolonialismo para dominação dos territórios indígenas, base de vida e de seus conhecimentos.
Durante séculos, o conhecimento indígena foi rotulado como 'saber tradicional' ou 'conhecimento popular', enquanto o conhecimento ocidental recebeu o status de ciência. Essa distinção não é neutra: é o reflexo de um processo histórico de colonização epistemológica, que deslegitimou modos de pensar e conhecer que não se enquadravam no modelo europeu de racionalidade.
Nacionalizações de territórios indígenas em todo mundo foi uma forma definitiva de inferiorização. Povos foram expropriados, línguas e suas tecnologias foram interrompidas. No Brasil foram 488 anos sem direito indígena, colocaram em dúvida se os povos indígenas tinham alma para justificar as matanças, dizimação dos povos indígenas, suas línguas, além de seus conhecimentos, ambos fundamentais para o manejo de conhecimentos e sua transmissão de geração a geração, além de cuidado e proteção de seus territórios herdados de Ñapirikoli4 que chamava a humanidade de Walimanai.
Em apenas menos de quatro décadas de direito indígena na Constituição da República do Brasil de 5 de outubro de 1988, que possibilitou aos povos indígenas a retomada de suas próprias ciências, foi então que os povos indígenas voltaram a se organizar originariamente e formalmente em defesa de seus direitos, reconquistar parte de seus territórios via direito originário sobre suas terras, fortalecendo sua organização social, suas línguas, costumes e conhecimentos originários, isto é suas culturas, seus sistemas de vida, seus conhecimentos práticos.
Além da Constituição de 1988, mais recentemente, o avanço da crescente presença indígena nas universidades e institutos de pesquisa, os povos estão acessando a formação acadêmica nas universidades, graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado. Com isso, abriu-se um novo ciclo: o de retomada e afirmação das ciências indígenas como sistemas legítimos, autônomos e necessários à reconstrução do bem viver. Todos esses sistemas de consolidar e/ou reconstruir o bem viver dos povos indígenas são fundamentais para projetar a contribuição e liderança desses povos frente a reconstrução do bem viver da humanidade.
Mesmo assim, a ciência ocidental ou também chamada ciência moderna, segue na perspectiva de denominar os conhecimentos indígenas em “saberes”. Qual será a dificuldade de reconhecer os sistemas de conhecimentos indígenas, como Ciência Indígena, em relação a Ciência, Tecnologia e Inovação. Sim, sabemos que em muitos casos é uma tentativa de reconhecimento, mas ainda não passa de continuidade de colonização, demonstra que não se sabe como se livrar desta prática, ou seja, as ciências dominantes que são feitas em cima de conhecimentos que ela inferioriza se verificou dependente com essa prática, ela precisa inferiorizar para existir. Esse gesto impede o diálogo simétrico e perpetua a colonialidade do pensamento e das tomadas de decisão.
Em contrapartida, as ciências indígenas, os conhecimentos indígenas, as tecnologias de cuidado dos povos indígenas não precisam diminuir outros sistemas para existir. Elas reconhecem a pluralidade do conhecimento e partem do princípio de que todas as formas de saber podem coexistir, desde que orientadas para o cuidado e a continuidade da vida. Essa é a base da ciência intercultural: um espaço de encontro entre epistemologias diferentes, sem hierarquias.
Esse debate ainda é necessário, visto que as agendas na COP30, cartas de comunidades científicas e tecnológicas, demandas e negociações em jogo, ainda se posicionam de forma a ter como narrativa a importância do reconhecimento dos conhecimentos indígenas, os tratando como “saberes tradicionais”, ignorando sua natureza científica e tecnológica. Reproduzindo e demonstrando a incapacidade estrutural de reconhecer as ciências indígenas, seus sistemas de conhecimentos próprios e suas tecnologias, interrompidas pela colonização, mas hoje em regeneração.
Cada povo indígena possui sistemas próprios de conhecimento, organizados em famílias linguísticas e troncos linguísticos são suas organizações sociais originárias, diversas, demonstra riqueza e complexidade de ciências próprias muito importante para o manejo do mundo e conservação da biodiversidade.
Nesse contexto, áreas como etnobiologia, etnoecologia, antropologia e outras, através de cientistas não-indígenas têm demonstrado a importância dos conhecimentos indígenas e dialogado com esses conhecimentos, juntamente com cientistas indígenas acadêmicos, possibilitando esse reconhecimento da diversidade epistemológica. Entretanto, a maioria dessas práticas ainda requer validação pela ciência ocidental, o que mantém o desequilíbrio simbólico: os povos indígenas continuam sendo “fontes de dados”, e não autores de ciência.
O desafio atual não é “integrar” o conhecimento indígena à ciência ocidental, mas construir um diálogo simétrico entre ciências. Isso exige o reconhecimento político e institucional das ciências indígenas como epistemologias autônomas, e não como fontes de “dados tradicionais”. Reconhecer como cientista indígena, não apenas os que chegam na academia, mas os que produzem, manejam e transmitem sistemas completos de conhecimento, nos centros dos territórios, na floresta, nos rios e nos sonhos. É aceitar e tratar de fato o conhecimento indígena como ciência.
Reconhecer que as ciências indígenas e a ciência ocidental são igualmente ciências é romper com a hierarquia construída pela colonialidade do saber. Ambas produzem conhecimento sistemático, empírico e coerente, mas partem de fundamentos distintos. Para enfrentar desafios globais como as mudanças climáticas, a perda de biodiversidade e a crise ética da civilização moderna, é necessário esse reconhecimento.
O caminho aqui proposto é o da parceria entre ciências, onde o conhecimento científico ocidental deixa de ser filtro e passa a ser um dos interlocutores dentro de um diálogo mais amplo sobre como cuidar da Terra e da humanidade. A reconstrução do bem viver exige corações e mentes abertas ao diálogo verdadeiro, capazes de reconhecer que ninguém detém o monopólio da ciência, e que o conhecimento é múltiplo, relacional e tão diverso quanto a própria Terra.
Essa mudança não deve ser entendida como concessão, mas como necessidade. Para a humanidade superar as crises ambientais e éticas, os compromissos assumidos na COP30 e a ação global devem acontecer com base na ciência intercultural, onde cada forma de conhecer colabora para compreender, proteger e regenerar o mundo.
1 - Pesquisador do bem viver e das medicinas indígenas, Assessor da SESAI, Conselheiro da WCS Brasil.
2 - Mestre em Conservação da Biodiversidade e Coordenadora do Programa de Povos e Territórios Indígenas da WCS Brasil.
3 - Yalanawi na língua baniwa significa não indígena, “pessoa branca”.
4 - Na cosmologia Baniwa, Ñapirikoli e os seus dois irmãos (Dzooli e Eeri), que formam a família ancestral, são heroicos criadores da humanidade.