Por: Ana Cíntia Guazzelli
Com espírito maternal de quem reencontra a prole após um ano de espera, diante das incertezas e intempéries de uma vida regada de desafios e ameaças, assim que a voadeira* aportou na Praia Alta, às margens do rio Guaporé, no município de Costa Marques, Rondônia, a especialista em quelônios da WCS, Camila Ferrara, já descalça e com a máquina fotográfica em punho, foi a primeira a pular da embarcação. Passos largos a desviavam das covas abertas e, em pouco tempo a vi distante, se debruçando na areia, muito próxima à cabeça de uma das mais de 600 fêmeas do maior quelônio de água doce da América do Sul, a tartaruga-da-amazônia (Podocnemis expansa) que, como um presente, subiram à praia durante a madrugada para ‘parir’.
Naquele momento, o que se passava pela cabeça da Camila, não consigo descrever, porque a mesma dificuldade encontro para narrar o estremecimento interno que se apoderou de mim. Também sozinha, sentei na areia e, observando aquela imensidão de fêmeas enormes de um bicho tão especial, que batalham arduamente por seus espaços para perpetuar a espécie, chorei. E agradeci.
Foram mais de 50 horas entre balsas, estradas de barro, asfalto e rio, da saída de Manaus, na quinta-feira, 17 de outubro, e aquele instante. Não sei precisar quanto tempo passei nessa espécie de transe. Sei que, quando me virei, bem pertinho de mim estava ela. Com sorriso largo, muito largo, olhos vivos e brilhantes, em tom de conquista, alívio e orgulho, Camila falou: “Chegamos! Essas são as minhas meninas”. Choramos juntas.
Sabíamos que todo esforço valeria para acompanhar esse momento único, que ocorre apenas uma vez ao ano: a desova dessa espécie de quelônio. As notícias que chegavam diariamente à especialista em Manaus, daqui do Guaporé, a preocuparam. É que, atipicamente, as tartarugas retardaram em muito o início da desova em 2024 – que começa, geralmente, no final do mês de setembro - e apresentaram movimentações incomuns. Ainda sem comprovação científica, mas muito provável pela experiência empírica, esse comportamento desconhecido ocorreu por elas também sentirem os efeitos das queimadas e das mudanças do clima. A fumaça espessa tomou conta dessa região nos meses de agosto e setembro, provenientes de grandes queimadas da floresta. “Isso provavelmente fez com que ocorresse o atraso da desova, uma vez que as tartarugas, além de terem perdido sua visibilidade fora da água, também não tinham sol para se aquecer e consequentemente acelerar seu metabolismo para o término da produção dos ovos”, explicou Camila.
Apesar da alegria do reencontro, a especialista não escondeu sua preocupação quanto ao futuro da espécie. É que o trecho das praias da Ilha, Alta, Suja e Tartaruguinhas, do rio Guaporé, utilizadas anualmente pelas fêmeas para desova, se localizam em áreas de fazendas privadas, portanto, sem qualquer tipo de proteção legal. A criação de uma unidade de conservação nesse território para conservação da espécie é um dos grandes desafios atuais da WCS Brasil.
O dia ficou nublado. À noite, a temperatura caiu muito. Frio na Amazônia. O que nos resta é aguardar amanhã para Camila dar continuidade às observações. Combinamos de sair da base da Ecovale às 5h30 rumo às praias das meninas.
Amanhã tem mais. Seguimos No Rastro das Tartarugas. Você vem junto?
*bote de alumínio