
A Amazônia, outrora sinônimo de abundância hídrica e biodiversidade inigualável, vive uma ameaça silenciosa, mas crescente: a intensificação das secas extremas. Os mais recentes dados científicos compilados pelo Projeto Pesquisa Ecológica de Longa Duração – Diversidade da Várzea (PELD-DIVA) revelam um cenário alarmante para os ecossistemas aquáticos da região e colocam em xeque a segurança alimentar de milhares de famílias ribeirinhas.
A seca de 2023, seguida de uma enchente fraca em 2024, não foi apenas mais um episódio climático extremo, foi um marco de ruptura. Segundo o Policy Brief Secas Extremas Podem Impactar a Pesca na Amazônia (dez./2024), os eventos recentes derrubaram níveis históricos do rio Negro e resultaram em forte redução das áreas de várzea, ambientes cruciais para alimentação e proteção de peixes jovens.
Essas alterações no regime hídrico são agravadas por anos consecutivos de aumento da temperatura e perda de cobertura florestal, fatores diretamente ligados ao desmatamento e às mudanças climáticas. A figura na página 4 do relatório ilustra com clareza a tendência: desde os anos 2000, as anomalias térmicas e de vazão dos rios se tornaram mais frequentes e intensas, criando um ambiente hostil para a reprodução e o desenvolvimento das espécies.

Peixes como o jaraqui e o curimatã, pilares da dieta amazônica e da economia pesqueira regional, são migradores de média distância e têm seu ciclo reprodutivo afinado com o pulso de inundação. Em anos de cheias fracas, a migração reprodutiva falha, e os berçários naturais, as várzeas alagadas, ficam inacessíveis. O resultado? Menor número de recrutas (jovens peixes que atingem idade reprodutiva) e estoques cada vez mais frágeis.
As imagens na página 6 do documento revelam a diferença entre uma seca típica e uma seca extrema, onde os peixes ficam confinados em bolsões de água, mais vulneráveis à predação e à pesca predatória. A mortandade massiva registrada em lagos rasos, como ilustrado na página 5, reforça o alerta.
A crise climática na várzea exige respostas rápidas e robustas. O documento propõe medidas concretas como:
- Ajuste dinâmico do período de defeso, com base em previsões climáticas;
- Inclusão de novas espécies vulneráveis na lista de proibição de pesca;
- Fortalecimento da fiscalização ao longo de todo o ano;
- Implementação de monitoramento via ciência cidadã, com engajamento direto de pescadores locais.
Panorama mais amplo? Múltiplas ameaças à biodiversidade aquática.
Se o primeiro Policy Brief se debruça sobre o impacto direto das secas, o mais recente: Estratégias para Conter as Ameaças à Diversidade de Peixes nas Várzeas Amazônicas (maio/2025) amplia o foco e revela que a biodiversidade aquática da região é pressionada por um conjunto de vetores: sobrepesca, hidrelétricas, mineração, desmatamento e mudanças climáticas.

Um dos dados mais alarmantes diz respeito à bacia do rio Madeira, onde se concentram múltiplas ameaças em simultâneo, uma combinação fatal para espécies migradoras. O estudo destaca ainda o papel do mercúrio liberado pela mineração e o impacto das barragens sobre rotas migratórias de peixes.
Ambos os documentos fazem parte dos esforços do projeto PELD-DIVA, que se apoia no monitoramento ecológico de longa duração para compreender a dinâmica das populações de peixes e propor estratégias de conservação baseadas em dados.
A coordenadora Flávia Kelly Siqueira de Souza (UFAM) e a vice-coordenadora Cláudia Pereira de Deus (INPA) reforçam que os dados gerados por esses estudos são fundamentais para distinguir variações naturais de alterações antrópicas e que essa distinção é a chave para políticas públicas mais eficazes.
Pesca, biodiversidade e cultura ribeirinha em risco

A pesca na Amazônia é mais do que uma atividade econômica: é um modo de vida, uma tradição cultural e um alicerce da soberania alimentar regional. Os alertas emitidos pelo projeto PELD-DIVA mostram que a sobrevivência dessa prática está diretamente ligada à conservação da várzea, um dos ecossistemas mais produtivos, e agora, mais ameaçados da Terra.
A imprensa, os gestores públicos e a sociedade civil precisam colocar o tema no centro do debate. A ciência já fez o seu alerta. O futuro da pesca amazônica depende de ações concretas, coordenadas e imediatas.
Confira aqui os estudos completos:
SECAS EXTREMAS PODEM IMPACTAR A PESCA NA AMAZÔNIA
ESTRATÉGIAS PARA CONTER AS AMEAÇAS À DIVERSIDADE DE PEIXES NAS VÁRZEAS AMAZÔNICAS