Novo estudo da Nature revela o papel vital da carne silvestre na segurança alimentar, cultura e conservação.

Anta (Foto: Marcos Amend)
A imensa riqueza biológica e cultural dos sistemas alimentares baseados na carne silvestre e sua importância para os povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores do interior da Amazônia foi detalhada em um estudo inédito publicado na revista Nature. A pesquisa reúne dados coletados entre 1965 e 2024 em mais de 600 comunidades de todo o bioma amazônico e evidencia, como resume André P. Antunes, primeiro autor, membro da RedeFauna e pesquisador do CENAP/ICMBio, “a grande diversidade biocultural da caça na Amazônia e sua importância nutricional para povos que historicamente defendem seus territórios e a floresta”.
Para o pesquisador, a conservação da Amazônia é essencial para que povos indígenas e comunidades tradicionais continuem praticando a caça — “atividade milenar que garante nutrientes fundamentais à sua saúde” — e esta é “a primeira estimativa em grande escala sobre a diversidade de animais caçados, os volumes extraídos e o valor nutricional da carne silvestre para essas populações”. Antunes também destaca que é “profundamente gratificante devolver esses resultados aos territórios que coletaram os dados ou acolheram equipes ao longo de décadas de trabalho de campo”.
O estudo estima que a carne silvestre produzida na região é suficiente para suprir quase metade das necessidades diárias de proteína e ferro dos 11 milhões de habitantes das áreas rurais do bioma, além de uma parcela significativa de vitaminas do complexo B e zinco, nutrientes essenciais para a saúde humana. A diversidade de animais consumidos é ampla, com pelo menos 500 espécies registradas. Ainda assim, 20 grupos de animais respondem por 72% de todos os indivíduos caçados e 84% da biomassa extraída, com destaque para queixada, anta e paca.
Ao longo dos 8 milhões de km² que compõem a Amazônia, estima-se uma extração anual superior a meio milhão de toneladas de biomassa animal, o equivalente a 0,37 milhão de toneladas de carne silvestre comestível. Se essa produção fosse convertida aos preços atuais da carne bovina, alcançaria um valor aproximado de US$ 2,2 bilhões por ano — uma riqueza invisível que sustenta a segurança nutricional de milhões de pessoas.
A caça tradicional na Amazônia é moldada por conhecimentos, regras e práticas culturais que regulam o uso da fauna há milênios. Povos indígenas e comunidades tradicionais mantêm populações saudáveis de fauna por meio de normas sociais, restrições espaciais e relações de reciprocidade com os animais, razão pela qual os maiores berçários de fauna encontram-se justamente nesses territórios. Como reforça Daniel Munari, membro da RedeFauna e especialista em Áreas Protegidas da WCS Brasil, “a caça tradicional é vital para a alimentação e a cultura dos povos indígenas e comunidades locais na Amazônia. A atividade depende de florestas íntegras e deve ser reconhecida como um direito humano assegurado legalmente”.
Os pesquisadores enfatizam que propostas de proibir ou substituir a carne silvestre sem reconhecer esse contexto representam visões colonialistas que ameaçam a autonomia e os direitos dos povos da Amazônia. Incentivar o manejo da fauna silvestre a partir da caça tradicional é apontado como caminho para conciliar conservação das espécies, direitos territoriais, práticas culturais e modos de vida.
Conduzida por dezenas de pesquisadores acadêmicos, indígenas e extrativistas, a pesquisa foi endossada pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e pelo Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS).
O estudo também alerta para a ameaça direta do desmatamento a esses sistemas alimentares. Em áreas onde mais de 70% da floresta foi perdida — cerca de 500 mil km² — a disponibilidade de animais e de biomassa caçada caiu 67%. Nessas regiões, espécies mais generalistas, como tatus, capivaras e pombas, tornam-se mais frequentes na caça, sobretudo próximas a centros urbanos, onde a demanda por proteína é maior.
Substituir a carne silvestre por carne de animais domesticados geraria enorme impacto ambiental. Produzir carne bovina equivalente à carne de animais silvestres consumida pelos povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultoras da região exigiria converter até 64.000 km² de floresta em pastagens, liberando até 1,16 bilhão de toneladas de CO₂ — aproximadamente 3% das emissões globais anuais. Além disso, carnes domésticas, especialmente de frango, apresentam níveis muito menores de ferro, zinco e vitaminas essenciais, agravando riscos nutricionais.
A pesquisa conclui que proteger a Amazônia é vital não apenas para conservar a biodiversidade, mas para garantir saúde, bem-estar, segurança alimentar e nutricional, soberania e continuidade dos modos de vida de milhões de habitantes rurais. Demarcar territórios e fortalecer a governança indígena e tradicional são estratégias centrais para assegurar a sustentabilidade dos sistemas alimentares baseados na carne de caça e para avançar no cumprimento de diversos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas.